Constelações no céu do inferno – Crítica do filme “SERTÂNIA” (Geraldo Sarno, 2020)
Escrevo esse texto permeado por cada encontro que tive na 23ª Mostra de Tiradentes.O dedico então, a todos aqueles que lá estavam comigo, em especial meus colegas do Juri Jovem Diego, João, Luísa, Marina e Murilo.
Nas brasas de uma fogueira, vislumbro o início do cinema. O violeiro que ali se alumia não resiste ao seu devir autoral e, propriamente autorizado pela noite, declama: Sertânia. Estamos diante de uma obra que reside no tensionamento entre a vida e a morte, desdobrando os delírios de um jagunço baleado imerso nas texturas da caatinga. Geraldo Sarno, refletindo sobre a memória a partir de Antão Jararaca, parece inscrever sua obra no contemporâneo a fim de reorganizar sua coleção de experiências artísticas, conjugando a alucinação cinema-novista com as repetições obsessivas dos ventos de hoje.
Antão escorado em pedra, baleado de tiro e de sol, conversa com seu capitão (Jesuino) à contraluz e à contra plano. Tá fraco da cabeça? Só parece. Um movimento de câmera situa o contra-plano de Jesuíno em uma festa, deixando para trás a indefinição da luz-sertão que cega os olhos. A fusão apresenta-se aqui como o mecanismo responsável pelo cruzamento das temporalidades, permitindo que o filme acesse a complexidade do tempo por meio do espaço. A dissolução das vivências no branco e preto é o esforço do filme em situar a história em sua própria ambiguidade. Assim como o crescendum da trilha sonora cria a suspensão necessária para que se navegue por essas águas. Uma forma dialética que só poderia existir no transe e no delírio da realidade latina-americana.
Frame de Sertânia (2020) de Geraldo Sarno
Esses diálogos continuam a ser travados no campo de batalha entre soldados e galhos contorcidos o otá de Xangô e a cruz de padre Ciço. Antão-Jararaca-Gavião, a cobra que dá o bote e aquele que mata a cobra, nos guia por entre esse apocalipse das sete encruzilhadas. Passamos por ruínas ficcionais de habitantes factuais, os mitos fundantes de nossa república pintados ao avesso. Vejamos Neblina, que a partir da sua amorfia heróica, flutua entre Jagunço, Tiradentes e Cacto mutilado, conseguindo cristalizar as contradições estruturantes do estado brasileiro.

Quadro “Tiradentes esquartejado” de Pedro Américo e frame do filme Sertânia (2020) de Geraldo Sarno
A narrativa acaricia com a malícia de Jesuíno o rosto maquiado das ladainhas ufanistas de unidade nacional e ri da inexpressão dos raios fúlgidos da liberdade. O sol aqui castiga, e pra tirar o anel se arranca o dedo. A criação da república banhada ao sangue preto, na trincheira e na fome. O filme cria a oportunidade de visualizar que amarraram nosso jegue na beira do abismo, que nosso espanto com a estupidez de Bolsonaro é fruto da nossa incapacidade de compreender a história do nosso próprio país. Reverberamos a necropolítica desde que Porfírio Diaz fincou sua bandeira preta na costa do Nordeste. Acreditamos por um momento que o tempo retardaria os ecos da desgraça que assola essa terra, mas a vemos novamente em uma repetição trágica e assombrosa.
Cena de Terra em Transe (1967) do diretor Glauber Rocha.
É por meio da memória que somos inseridos no tempo, e a partir dela que construímos nossa subjetividade. A pulverização da identidade brasileira num ser sempre vazio, que vive na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro¹, parece ter seu mecanismo propulsor precisamente na falência da capacidade de se recordar. É preciso que você se esqueça de sua língua mãe, da sua cultura originária, se esqueça dos genocídios e anistie seus mandantes. É só no total desmemoriamento que a ideia de pátria se torna suportável.
Insistimos no cinema porque acreditamos que o tempo não pode desaparecer sem deixar vestígios². Seja por meio da imagem revelada, ou da voz que proseia, tentamos vencer a desmembração de nós mesmos a partir da reprodução técnica. Propagar por um eco a matéria que nos forma. Fazemos cinema para não nos esquecermos, para que possamos mudar o fluxo do tempo e manter nossa existência por dentre a deslembrança. Brincamos com futuros impossíveis até que consigamos tatear uma imagem. É o caminho que Antão tenta travar ao repassar a sua vida e lutar contra o recalque (mesmo que ele não tenha saído vitorioso dessa batalha).
Essa confusão de acontecimentos, digeridos pelo ácido estomacal de um cineasta de 82 anos, parece conclamar a presença espectral daqueles que marcaram o corpo do mundo. Afastado de uma simples citação, Sertânia procura alicerce na invocação irreverente dos autores do tempo — aqueles que o esculpiram a partir de seus procedimentos estéticos. Fantasmas que deliram jovens a procura do cânone e amedrontam com suas sombras cineastas covardes. O filme, já dentro da morte, se permite bailar com os donos do inferno numa dança estroboscópica. De Glauber à Tarkovsky, todos dançando loucamente em fusão com o bumba-meu-boi, pra ver sair mais um filme vomitado pelo caos.
Frames do filme Sertânia (2020) de Geraldo Sarno
O boi, que menos autor não é, parece sintetizar a experiência cinematográfica do filme. Presente na morte, o bicho reluz pelos olhos a recompensa do infinito. A Kalunga como divisora do mundo dos vivos e dos mortos se faz presente nos espelhos e brilhos d’água. É pra onde Firmino direciona seu olhar melancólico em Barravento (1962) e o que abre o portal para Gavião penetrar no mundo das sombras em Sertânia — é por lá que se chega ao Brasil.
As duas noites que começam e finalizam o filme, marcas da tenebrosidade contemporânea — em que o perigo de Era uma vez Brasília (2017) é iminente, ou onde a fogueira de Sete anos em maio (2019) estala a história de Rafael — constroem esse lugar de onde o filme parte e retorna depois de passar pela terra do sol, que aqui não deixa de ser um sol-da-meia-noite. Geraldo Sarno arremessa a cabeça de Antão no presente com boca e olhos abertos, para que esse possa nos ofertar um testemunho de ruínas.
É uma trajetória por precisão, necessidade. Castiel Vitorino Brasileiro, em um dos debates da 23ª Mostra de Tiradentes, sentenciou que será só a partir da experiência de morte que um certo cinema brasileiro realmente poderá crescer. Imobilizados por um discurso verborrágico de libertação das massas, herança de um modelo sociológico que norteia a leitura do real³, cineastas ainda agonizam dentro de um quarto com janelas e portas trancadas. Com um laço de cetim na cabeça, insistem numa retórica de alienação de um povo expectante, enquanto esse mesmo povo rompe os portões da casa-parasita saqueando seus móveis e comida.
Os olhos do filme encontram-se no meio desse nó do cinema político brasileiro, gritando numa repetição irônica a condição de inocência dos retirantes. Essa suposta inspiração heroica de Antão, de mesmo desespero dos cineastas trancafiados, é resultado de uma falsa premissa narrativa. É por isso mesmo que ele, ao gritar, não se comunica com Jesuíno — quem realmente atiraria no povo — mas sim com a câmera. O gesto de exposição do aparato parece revelar exatamente de onde surgem os problemas tratados ali, em praça pública. Alinhe a arma com o eixo, por favor.
Em meio a uma tempestade de estrelas, Sertânia não para de criar terceiros. A construção desse vasto edifício de memórias irrompe como um contra-monumento dentro da pilha de destroços. No momento que a tela se apaga, e o preto se instaura, o branco se faz presente em nossa retina, perpetuando a sensação crescente da trilha sonora — passado o filme, nos damos conta que ele ainda se passa em nós. “A imagem torna-se verdadeiramente cinematográfica quando não apenas vive no tempo, mas quando o tempo está vivo em seu interior”⁴.
Gustavo Maan
¹ Trecho retirado do texto “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento” de Paulo Emílio Salles Gomes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, [1973] 1996, p. 90
² Trecho retirado do livro “Esculpir o tempo” de Andrei Tarkovski. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p.66.
³ Aqui se faz referência ao livro “Cineastas e Imagens do Povo” de Jean Claude Bernardet
⁴ Trecho retirado do livro “Esculpir o tempo” de Andrei Tarkovski. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p.78
Estudante do Curso Superior do Audiovisual na ECA USP, desenvolve atualmente uma pesquisa sobre as religiosidades afro-brasileiras no cinema nacional. Escreve pra Zagaia.
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Que sensibilidade, que olhar esplêndido, que palavras assertivas!!! Parabéns!!!!
Que belo texto, que maravilha percorrer entre as palavras que dizem tanto, que demonstram um olhar sensível para a vida cotidiana e que se confunde com a história de todos nós!
Orgulho!
Tive o privilégio de “ver” este filme pelos olhos de Gustavo. Digo privilégio porque suas palavras me cortaram e não é sempre que somos afetado pelo outro. Em tempos de recrudescimento o exercício de valorizar a história e as memórias nos dá chance de encontrar aproximações com o diverso. Travamos permanente batalhas, e estas sejam reais ou ficcionais nos deixam cicatrizes, algumas nunca se Irão se fechar, mas o que mais importa é a resistência.
Linda crítica a de Gustavo, uma ode a modos de resistir.
Crítica consistente e poética!